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Limitações da Democracia Direta e Indireta

Considerando a democracia como “o governo do povo, pelo povo e para o povo”, como enfatizou Abraham Lincoln em seu discurso em Gettysburg (1863), a forma democrática ideal seria aquela na qual o cidadão é chamado a colaborar em todas as decisões importantes de sua nação, sem intermediários, exercendo seu poder político de forma direta. Este modelo de decisão política foi concebido na cidade-estado de Atenas na Grécia antiga no século V a.C., o poder de decisão deixou de estar nas mãos de uma pessoa ou um grupo de indivíduos e passou às de todos os cidadãos. Os homens livres atenienses eram chamados para a praça pública para decidir sobre questões cotidianas e o destino da cidade, este foi o princípio do conceito e do emprego da democracia, posteriormente conhecido como democracia direta. Com o avanço romano este modelo político caiu em desuso, sendo retomado somente no século XIX em experiências anarquistas e mais recentemente em formatos de democracia participativa, com influência restrita a pequenos núcleos ou áreas específicas. A pouca utilização da democracia direta como instrumento de tomada de decisão, se deve primeiramente à impossibilidade mecânica de permitir que todos os cidadãos participem de todas as deliberações da cidade, Estado ou nação. Tal nível de participação política se tornou impraticável, na medida que as sociedades foram se tornando maiores e mais complexas. Outro fator que faz da democracia direta uma possibilidade menos atraente está relacionado à privacidade do indivíduo. Pois quando ele é chamado a deliberar sobre todo e qualquer assunto, ainda mais quando estes se sucedem a um ritmo cada vez maior como hoje em dia, este indivíduo perde sua privacidade, seu direito e liberdade de poder levar uma vida que esteja fora do âmbito das decisões, na qual ele possa exercer a sua vida íntima plenamente. O Homem Total deixa de existir para dar lugar ao Cidadão Total, este é chamado a interagir com tudo o que está ao seu redor, permitindo também que aquilo e aqueles que o rodeiam, interfiram, mesmo que indiretamente, na sua privacidade. Ou seja, tudo o que é privado se tornaria público, e isto é algo que levanta uma série de rejeições. Outro formato de democracia existe é a representativa, nela as deliberações coletivas não são tomadas diretamente pelos membros da coletividade, mas por pessoas eleitas para tal finalidade. Ela é empregada em praticamente todos os regimes democráticos modernos e contemporâneos e também é responsável pela atual sensação de falta de democracia e necessidade de alargar os seus limites. A democracia representativa pode ser exercida de duas maneiras, por uma representação através de delegação onde um indivíduo representa outros, atendendo os interesses particulares destes e de sua classe, através do que é chamado de “vinculo de mandato” em que a atuação deste delegado é restrita aos interesses da classe que ele representa e a ela está vinculado intimamente. Outra maneira de representação é a exercida por um fiduciário, ou seja, por uma pessoa que detenha a confiança de outras, e a revele, no sentido que corresponda à confiança das mesmas. É o caso da representação parlamentar, onde este fiduciário age de maneira ampla em prol de interesses gerais. Estas duas modalidades de representação carregam potenciais limites para a soberania do povo e de uma democracia voltada para ele. O primeiro tipo é exercido em favor de uma determinada classe, é o que podemos considerar representação orgânica, ou o que Paul Hirst chama de “mecanismos corporativos”. O representante regularmente pertence à classe a qual representa e possui um mandato que pode ser revogado, na medida em que ele não corresponda aos anseios de seus pares. Os operários serão representados por um operário, os estudantes por um estudante e assim por diante. Esta forma de representação é a mais adequada a uma arena de deliberação restrita e mais técnica, voltada para os assuntos de uma determinada classe, pois é sensato que os professores deliberem sobre as questões pertinentes a uma faculdade, do que operários, e que estes debatam sobre as suas particularidades em lugar de professores ou algum representante de outra classe qualquer. O problema é quando esta forma de representação é transposta para o debate coletivo. Pois nesta forma de debate o que deve prevalecer são os interesses gerais, e a intromissão de interesses particulares certamente levará ao risco de que o bem coletivo seja posto de lado em favor do interesse corporativo. A crescente representação corporativa dentro de um Estado Parlamentar pode levar a uma setorialização das ações de governo em detrimento de classes menos representativas, neste caso, as minorias e os setores menos organizados e economicamente mais pobres da sociedade. A segunda forma de representação, a do tipo fiduciária, é teoricamente a mais adequada ao Estado Parlamentar onde as demandas da coletividade são o tema central. Este cenário é dominado pelos políticos, que em geral são preparados para tal atuação. Mas esta forma de representação também demonstra limites, o mais comum e generalizado é originado pela falta de controle da ação deste representante por parte de seus representados. O eleitor escolhe quem irá decidir, mas não como será sua decisão. Também a gama de alternativas é restrita e está ligada aos partidos que se apresentam em determinada eleição, e com freqüência o eleitor não possui muitas alternativas para mudar seu voto. Como não existe um vínculo de mandato com uma classe e que este não é revogável, mas permanente ao prazo estipulado (salvo algumas cláusulas expressas na legislação), o representante fica suscetível a agir da forma como melhor convir aos seus interesses, mesmo que eles sejam contrários aos interesses da coletividade. Os mandatários que atuam desta forma, são regularmente políticos que não vivem para a política, mas da política, como resumiu Max Weber de forma exemplar no clássico “Ciência e Política: duas vocações”. Em linhas gerais, estes são os dois principais problemas das democracias representativas atualmente; a centralização do debate político na defesa de demandas corporativas e as ações e decisões que beneficiam interesses escusos de alguns indivíduos, que também pode ser em favor de uma determinada classe ou corporação. Nestes casos o cidadão comum é praticamente banido da tomada de decisões e suas demandas não são atendidas. Geralmente quando estes casos se propagam e passam a por em risco a própria existência da democracia evidenciando seus limites, faz-se a exigência de “mais democracia”, o que se exprime regularmente na conjugação da democracia representativa com democracia direta, mas como vimos acima, esta também carrega em si dificuldades que impossibilitam a sua total utilização. Outro fator que dificulta o alargamento da democracia nos Estados modernos é a grande burocratização. Toda política pública é implementada na prática não por seus idealizadores (parlamentares ou governo) ou pelos seus demandantes (povo), mas por integrantes da burocracia estatal. Estes, via de regra, carecem de maior eficiência no exercício de suas funções e também de um maior rigor no desempenho e fiscalização efetiva de suas atividades, sob o risco de haver sucessivos casos de negligência com a atividade administrativa pública e corrupção. O que se fazer então se tanto a democracia direta e a representativa apresentam limites tão consideráveis à sua execução? Bobbio trabalha com a idéia de uma democracia mista, nem totalmente direta, nem totalmente representativa, mas uma composição das duas que pode variar de inúmeras formas, tantas quantas realidades ela pode compreender. A cada Estado caberia formular um sistema democrático que conjugasse de maneira equilibrada os dois modelos, segundo as particularidades de cada país. Esta seria uma forma de aplacar os efeitos negativos que cada uma dessas formas contém, onde existem limites à democracia direta seriam empregadas fórmulas de representação e onde a democracia representativa evidenciasse seus limites se adotaria práticas de democracia direta, utilizando com mais freqüência a interação entre Estado e sociedade civil. Isto evidentemente, aliado a uma maior fiscalização pela sociedade nos processos decisórios e uma maior transparência na administração pública em geral. Ambas as situações, precisam estar condicionadas ao grau de instrução e mobilização da sociedade. Cidadãos com melhor formação terão melhores condições de analisarem as propostas de políticos, serão mais capazes de compreenderem a primazia do bem-estar coletivo em detrimento dos benefícios exclusivamente individuais, de se organizarem socialmente para melhor fiscalizarem e cobrarem de seus representantes, de forma geral, de exercer uma cidadania mais ativa. Antes de qualquer debate sobre que variedade de modelo democrático adotar, seria importante permitir à população o acesso à informação; assegurar um ensino barato, senão gratuito, e de qualidade; propor projetos de incentivo para a formação de bacharéis, mestres e doutores, estimular a produção científica de pesquisa e tecnologia. Somente assim a sociedade poderá realmente combater de forma eficaz os problemas da democracia representativa e trabalhar para uma participação mais direta da população na administração pública.
REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
HIRST, Paul. A Democracia Representativa e Seus Limites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.

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