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Trajetória dos Modelos de Gestão de Políticas Públicas no Brasil

A administração pública brasileira pode ser dividida em fases nas quais um modelo político ou de gestão prevalece sobre os demais, reflexo da influência que o contexto social e institucional exerce sobre as ações estatais em cada período histórico. As primeiras experiências relevantes remontam à chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808, e se estendem por todo o período monárquico até a proclamação da república em 1889. Nesta fase o regime político é pautado pelo que Max Weber caracterizou como Patrimonialismo, uma forma de “poder político organizado através do poder arbitrário/pessoal do príncipe e legitimado pela tradição” (CAMPANTE, 2003, p. 156). Toda a ação administrativa estava diretamente ligada ao mandatário por meio de um estamento[1], o que não representava uma centralização total da atividade governamental, sendo que os funcionários possuíam um elevado poder decisório sobre diferentes questões administrativas, como escreve Raymundo Faoro acerca do patrimonialismo estamental no Brasil imperial: “(...) concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de concessão de crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia” (FAORO, 1975, p. 737). Este estamento burocrático do Estado raramente cumpria de forma eficiente suas atribuições, o que freqüentemente gerava problemas com os grandes proprietários rurais. Esta classe detinha consideráveis recursos econômicos e representava um poder paralelo à coroa no império, seu crescente poder e seu descontentamento com as determinações imperiais contribuíram para a instauração da República em 1889. Neste momento tem início um novo período político e institucional, a atividade estatal ainda era pautada pelo patrimonialismo com um viés fortemente clientelista, mas o poder já não repousava sobre os membros da realeza, estava centrado sobre o patronato rural. Com a instauração de um sistema eleitoral, o estamento do período imperial aos poucos é substituído por mandatários eleitos e funcionários mais especializados. A realização de sucessivas eleições, o frágil regime institucional e a concentração de poder dos grandes proprietários rurais, proporcionaram o surgimento de um arranjo político conhecido como “Coronelismo” (LEAL, 1978). Os políticos não poderiam prescindir do eleitorado rural que representava a maioria dos eleitores, recorriam aos “coronéis[2]”, que exerciam o poder econômico e político nas localidades do interior, para que conseguissem os votos desejados. O coronel, por meio do “voto de cabresto[3]”, angariava o apoio necessário para a eleição de um político, este ao ser eleito se comprometia com as demandas do coronel, consolidando seu poder e as bases do sistema (LEAL, 1978, p 43). Esta prática foi responsável por uma acentuada desorganização administrativa nos municípios interioranos, sendo que a interferência do coronel direcionava as ações dos governos locais para seus interesses, em detrimento das necessidades da população. O Coronelismo predominou absoluto na política e na administração pública brasileira até 1930, quando Getúlio Vargas assume a Presidência da República após um levante militar. Tem início um período de modernização das atividades estatais, o modelo tradicional amparado basicamente na cultura e nos costumes diminui sua predominância e abre espaço para um formato baseado na execução das leis, o modelo racional-legal. Este conceito de administração pública também foi introduzido por Max Weber e caracteriza-se pela ênfase na burocracia estatal, impessoalidade das iniciativas governamentais, pela adoção dos critérios de meritocracia para o serviço público, na objetividade administrativa e na separação do quadro de funcionários dos meios materiais da organização (WEBER, 1999, 2002). Um sistema mais adequado aos novos desafios impostos pelas mudanças socioeconômicas pelas quais passava o país, como a cristalização da economia capitalista, a progressiva industrialização, a urbanização das cidades e uma maior estratificação da sociedade. As transformações que tiveram início na década de 1930 foram aprofundadas nas décadas seguintes, a atuação do Estado se tornou mais heterogênea com a incorporação de novas demandas e o governo atuando diretamente nas mais diversas áreas, das atividades sociais às econômicas. A ampliação da agenda governamental refletiu em uma crescente burocratização do Estado brasileiro, este processo resultou em um aumento do poder político e decisório do funcionalismo, como preconizou Max Weber: “Em um Estado moderno, o domínio efetivo que não se manifesta nos discursos parlamentares (...), mas sim no cotidiano da administração, encontra-se necessária e inevitavelmente nas mãos do funcionalismo, tanto do militar quanto do civil” (WEBER, 1999, p. 529). Este modelo teve seu auge durante o regime ditatorial (1964-1985), no qual a ânsia centralizadora dos militares fez com que a burocracia permeasse toda a vida da sociedade. Porém a realidade social, política e econômica do Brasil não contribuiu para que os eventuais ganhos do modelo racional-legal se efetivassem no país. Nos últimos anos de regime militar, o elevado grau da organização estatal não representava em uma melhora dos serviços públicos, implicava sim, em uma perda do controle da gestão da máquina pública. Seu gigantismo também se tornava demasiadamente oneroso para o Estado, principalmente em um momento de estaginflação[4] da economia nacional (início da década de 1980). As limitações da aplicação do modelo racional-legal ao contexto brasileiro desgastaram o governo militar, e entre outros fatores, contribuíram para a redemocratização do país, processo que culminou com a eleição indireta de um presidente civil em 1985 e a promulgação de uma nova Constituinte em 1988. A carta constitucional promulgada não enfatizou um modelo de gestão em particular, sendo que seu texto é “heterogêneo, sem o predomínio absoluto de uma única tendência política” (BARROSO, 2001, p. 1581). Por exemplo, seu texto original era marcado por um elevado grau de intervenção do Estado na economia e pela concepção de universalização dos serviços sociais, propostas identificadas com o Keysianismo e o Estado de Bem-Estar Social respectivamente, por outro lado apregoava uma descentralização do Estado repassando aos Estados e Municípios mais competências administrativas, idéia mais alinhada com preceitos do modelo gerencial. Como os constituintes não definiram explicitamente um modelo político-administrativo para o país, somente em meados da década de 1990 é que o cenário institucional brasileiro se tornar mais claro e coerente. Neste momento dois modelos ganham espaço e se tornam referenciais para nossos administradores públicos, a Gestão Democrático-Participativa e principalmente a Gestão Gerencial (New Public Management). Em 1994 Fernando Henrique Cardoso (PSDB[5]) é eleito Presidência da República graças à estabilização econômica proporcionada pelo Plano Real, do qual ele foi um dos principais promotores. Além da estabilidade da moeda e da inflação, seu governo adotou medidas de desregulamentação do mercado, controle e redução dos gastos públicos, privatização de empresas estatais, incremento da descentralização administrativa, planejamento estratégico dos objetivos governamentais, que entre outras ações constituíam uma proposta de reforma do Estado brasileiro (BRESSER-PEREIRA & SPINK, 1998, p. 21-38). A intenção das medidas era dotar o Estado de um maior grau de eficiência, tendo como foco o cidadão, entendido aqui como um “consumidor” dos serviços prestados pelo setor público. Apesar deste modelo de gestão pública ter predominado no país nos últimos quinze anos, paralelamente a ele desenvolveu-se diversas experiências de democracia-participativa, sobretudo nos governos chefiados pelo Partido dos Trabalhadores (PT), legenda de oposição ao PSDB. O modelo democrático-participativo é mais associado à esquerda política, em função de suas características cooperativistas e sua identificação com as demandas sociais, entretanto ele não é defendido ou empregado exclusivamente por esta vertente, a gestão gerencial também utiliza seus mecanismos de deliberação, principalmente no sentido da descentralização administrativa. A contribuição da democracia participativa para a sustentabilidade das políticas públicas e a aproximação da sociedade das questões estatais que ela promove, fazem com que este modelo seja “aceito de modo generalizado por todo o espectro político e ideológico, pelas agências internacionais de financiamento e pelas distintas correntes teóricas que se dedicam aos temas da democracia e da gestão pública” (NOGUEIRA, 2004, p.118). As principais contribuições e inovações do modelo democrático-participativo para a gestão pública são a modificação da articulação entre governantes e governados, a promoção de novas formas de controle do governo pela sociedade, o fomento de parcerias dentro e fora do Estado, a superação do formalismo e da burocracia nas operações de gestão pública, a sugestão de novas formas de gerenciar os recursos e o procedimentos estatais, a adoção de critérios de eficiência administrativa e a exigência de recursos humanos qualificados (idem, p. 145-151). Tais preceitos se expressam na administração pública brasileira contemporânea, em especial por meio da profusa formação de conselhos gestores de políticas públicas e pelas iniciativas de orçamento participativo. A emergência concomitante destes dois modelos aliada a transformações políticas e socioeconômicas globais, apontam para uma mudança teórica e prática da administração pública tradicional, “frisando novas tendências de uma gestão compartilhada e interinstitucional que envolve o setor público, o setor produtivo e o crescente terceiro setor” (FREY, 2007, p. 138). A participação de novos atores no processo de gestão de políticas públicas é possível em função da adoção de estruturas burocráticas horizontais, pelo surgimento de formatos informais de articulação potencializados pelos avanços tecnológicos recentes, e pela abertura de novos canais de participação. Estes elementos manifestam uma mudança paradigmática orientada para uma administração pública organizada em forma de rede. Alguns de seus traços característicos são, a diversidade de atores, a auto-organização, uma relativa independência do Estado, a possibilidade de estreitamento dos laços entre os diferentes atores, a mobilização conjunta em prol de interesses comuns e a crescente utilização de recursos tecnológicos de comunicação na sua articulação. O modelo de gestão em rede pode ser dividido em três tipos, “redes de projetos” acionadas em função de um objetivo preciso, as “comunidades de políticas públicas” articuladas em torno de uma das grandes áreas de atuação do setor estatal (educação, saúde, segurança, planejamento, etc.), e as “comunidades epistêmicas” que se reúnem de acordo com os valores, idéias e técnicas compartilhadas por seus integrantes (MASSARDIER, 2007, p. 173-178). Algumas realidades da administração de políticas públicas atual, como a crescente complexidade da máquina estatal e do acirramento da disputa de interesses, enfraquecem a resposta do Estado às demandas da sociedade. Neste sentido, a gestão em rede ao passo que promove a articulação e a cooperação pode representar uma maior eficiência das ações estatais, semelhante ao que escreve Klaus Frey: “Arranjos de governança podem contribuir para reduzir externalidades negativas de políticas públicas, mas ao mesmo tempo podem impulsionar externalidades positivas através de mobilização integrada das ‘sustentabilidades’ econômica, social, ecológica e política” (FREY, 2007, p. 140).
A gestão em rede das políticas públicas é um reflexo da tentativa de adaptação da administração pública à dinâmica volátil da sociedade contemporânea. Esta mesma realidade contribui para que a identificação dos modelos de gestão na administração pública brasileira já não possa ser entendida apenas observando cada uma de suas formas individualmente. Isto porque, cada vez mais os governos tendem a adotar mecanismos de diferentes modelos ao procurar suprir as demandas da sociedade. No campo teórico eles muitas vezes apresentam aspectos contraditórios e auto-excludentes, no entanto, na prática as ações de gestão próprias de cada modelo podem ser aplicadas paralelamente ou em conjunto pelos administradores públicos.

REFERÊNCIAS

BRESSER-PEREIRA, L. C.; SPINK, P. (Org’s.) Reforma do estado e administração pública gerencial. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.
BARROSO, Luis R.. Constituição de 1988 (VERBETE ASSINADO). Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, p. 1580-1582, 2001. (Verbete de dicionário).
CAMPANTE, Rubens Goyatá. O patrimonialismo em Faoro e Weber e a sociologia brasileira. Dados, Rio de Janeiro, v. 46, n. 1, p. 153-193, 2003 .
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2ª ed., Editora Globo, Porto Alegre, 1975.
FREY, K.. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas públicas no Brasil. Planejamento e Políticas Publicas (IPEA), Brasília, v. 21, p. 211-259, 2000.
FREY, K.. Governança urbana e participação pública. RAC - Revista de Administração Contemporânea, v. 1, p. 136-150, 2007.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. 4ª ed., São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1978.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a Sociedade Civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. São Paulo: Cortez, 2004.
MASSARDIER, G.. Redes de Política Pública. In: Políticas Públicas (Col.). Brasília: ENAP, v. 2, p. 161-186, 2007.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2, Brasília: Editora UnB, 1999.
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.

NOTAS
[1] Corpo de funcionários escolhidos pelo governante, distribuídos por toda a estrutura administrativa do Estado. Em busca de um maior status social, se apropriam e desfrutam dos benefícios econômicos que seus cargos proporcionam. [2] O termo coronel deriva dos comandantes da Guarda Nacional do período imperial, e passou a ser dado pelo povo a todo e qualquer chefe político, nas localidades do interior quem exercia esta condição de fato eram os fazendeiros, que em função de seu poder econômico, controlavam de diferentes formas o cotidiano das pessoas de sua localidade. [3] Voto determinado pelo coronel mediante sua predominância em relações de submissão, apadrinhamento e benéficos econômicos, sobre parcela dos eleitores de um município. [4] Conjuntura econômica que combina estagnação produtiva e alta inflacionária. [5] Partido da Social Democracia Brasileira

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