Algumas
concepções de democracia apresentam em comum a idéia de que os cidadãos não são
meros objetos da vontade dos legisladores, atuando de forma passiva diante dos
governos, eles são entendidos como parte integrante do sistema de governo de
suas sociedades, seja atuando diretamente ou se fazendo representar por
mandatários eleitos por eles (GUTMANN; THOMPSON, 2007, p. 19s). Neste sentido,
David Held acrescenta um viés qualitativo, escrevendo:
“De
democratas clássicos a republicanos desenvolvimentistas, dos liberais
desenvolvimentistas a democratas participativos, o envolvimento político é
valorizado, pois promove um senso de eficácia política, gera uma preocupação
com os problemas coletivos e alimenta a formação de um cidadão conhecedor capaz
de perseguir o bem comum” (HELD, 2006, p. 231).
No entanto a maioria dos teóricos
democráticos não possui esta visão cívica da democracia, para eles esta forma
de regime político seria um meio para proteger os cidadãos e seus governantes
uns dos outros, adotando uma sólida estrutura política capaz de produzir uma
elite responsável e capacitada para tomar as decisões públicas essenciais
(idem). Estas concepções serviam satisfatoriamente para uma análise das
sociedades ocidentais tradicionais, no entanto as transformações políticas,
sociais, econômicas, culturais e, sobretudo, tecnológicas, ocorridas após a
década de 1960, demandavam uma abordagem do novo contexto democrático que os
modelos até então formulados não possibilitavam. Emergiu então durante as
décadas de 1970 e 80 a idéia de democracia deliberativa, inicialmente utilizada
para identificar uma abordagem política centrada na melhoria da democracia. Não
se trata de apenas aumentar a participação política, mas torná-la mais
eficiente, utilizando para isto espaços que propiciem o debate, um debate que
seja pautado pelo uso público da razão e da busca imparcial da verdade (idem,
p. 232).
Gutmann e Thompson enumeram quatro
características para identificar a democracia deliberativa (2007, p.
19-23). A primeira e mais importante
delas é a necessidade de justificação. Os argumentos, as ações e as decisões
que emergem da arena política precisam ser justificados por argumentos justos,
de modo que aqueles que estão participando do debate não o possam sensatamente
rejeitar. A adoção de argumentos falsos e enganosos, ou como identificaria
Robert Dahl como uma prática de persuasão manipulativa (DAHL, 1981, pág. 39),
descredenciaria a própria justificativa, como também, seria um desrespeito aos
demais integrantes do processo deliberativo. A segunda característica apontada
pelos autores é que os argumentos que servem de justificativa precisam ser
acessíveis a todos os envolvidos, ela deve ser pública e possível de ser
compreendida, mesmo que seja apenas seu conteúdo essencial.
Outro aspecto próprio da democracia
deliberativa consiste na formulação de uma decisão que seja vinculante por
certo período de tempo, isto é, que seja capaz de influenciar as decisões
governamentais ou outras decisões futuras. Este aspecto está relacionado com a
última característica identificada por Gutmann e Thompson, de que no modelo
democrático deliberativo o processo decisório é dinâmico, a decisão possui
importância tanto para o que ocorre antes dela ser tomada como para o que
acontece depois, mantendo o processo decisório aberto e reconhecendo que seus
resultados são provisórios. Com base nestas quatro características, os autores
propõem uma definição de democracia deliberativa, este modelo seria:
“uma forma de governo na qual, cidadãos livres
e iguais (e também seus representantes), justificam suas decisões por meio de
um processo em que os atores envolvidos apresentam uns aos outros motivos que
são mutuamente aceitos e geralmente acessíveis, com o objetivo de atingir
conclusões que vinculem no presente todos os cidadãos, mas que possibilitam uma
discussão futura” (GUTMANN;
THOMPSON, 2007, p. 23).
Semelhante a esta definição é o
princípio apontado por Held para a justificação do modelo democrático
participativo, para ele os termos e condições da
associação política são estabelecidos com base no consentimento livre e
fundamentado de seus cidadãos, em outras palavras, uma justificação amparada no
contrato social. A 'justificabilidade mútua’ das decisões políticas é o
fundamento legítimo para a busca de soluções para os problemas coletivos” (HELD,
2006, p. 253). Este autor ao traçar as
características da democracia deliberativa adota um viés muito mais processual
do que Gutmann e Thompson, cuja
preocupação aparentemente é mais normativa. Para Held as características chave
deste modelo de democracia seriam experiências participativo-deliberativas como
sondagens deliberativas,
colóquios de deliberação e júris de cidadãos; iniciativas de governo
eletrônico, por exemplo, disponibilização on-line de informações para acesso
direto aos representantes. Outras características seriam também, a e-democracia,
incluindo programas on-line que criem novas instâncias públicas, possibilitando
a análise em grupo e geração de propostas de políticas, através de deliberação
da vida pública, desde micro-instâncias a configurações transnacionais; e
ainda, novas utilizações de referendos deliberativos vinculadas a enquetes,
fóruns, etc. (idem).
Por fim, David Held expõe as condições
gerais nas quais a democracia deliberativa geralmente se manifestam, fazem
parte delas, o pluralismo de valores; a existência de programas que fortaleçam
a educação cívica, a cultura e as instituições públicas, apoiando assim, o
desenvolvimento "refinado" e "reflexivo" das preferências
individuais; e a possibilidade de financiamento público de órgãos deliberativos
e suas práticas, bem como, de associações secundárias que os apóiem (idem).
Referências
DAHL, Robert Alan, Análise Política Moderna. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1981.
GUTMANN, Amy; THOMPSON,
Dennis. O Que Significa Democracia Deliberativa. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo
Horizonte: Ano 1, n. 1, jan./mar., p. 17-78, 2007.
HELD, David. Models
of Democracy. 3ª Ed., California (USA): Stanford University Press, 2006.
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