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A Questão Democrática Ante o Processo de Globalização

A queda do muro de Berlim em 1989 foi um marco para a humanidade, naquele momento estavam ruindo as estruturas do chamado bloco soviético, que englobava as nações do pacto de Varsóvia (URSS e países do leste europeu), Estados adeptos da ideologia socialista. Criou-se nos primeiros anos após este fato um otimismo universal que apontava para a confirmação histórica da tese liberal, de que haveria uma associação necessária entre as economias de mercado e os regimes políticos liberais (democracias capitalistas).
Esta idéia se baseia nos seguintes fatos conjunturais: a) o processo de globalização, no plano econômico; b) a hegemonia do liberalismo econômico, no plano ideológico; c) a expansão geométrica do número de democracias, no plano político; d) a longa reorganização da supremacia mundial norte-americana, no plano geopolítico. Com isto acreditou-se que o paradigma individualista empresarial voltado para a economia de mercado teria obtido a vitória absoluta, mas a realidade global mostra que este modelo também possui problemas, que são potencializados com o desaparecimento da outra alternativa, representada pelo outro pólo ideológico da modernização, o socialismo. Este questionamento é levantado por Kurz:
“O modo de viver Capitalista é demasiado unilateral, o mercado é demasiado desintegrador, e a ideologia ocidental é demasiado débil, para que esse sistema pudesse sobreviver sem a existência de um pólo oposto”[1].
Sendo que o capitalismo e o socialismo não são alternativas que se excluem mutuamente, mas constituem os dois pólos de um mesmo “campo” histórico da modernidade. E a partir do momento que um destes pólos se desintegrou, o outro não se fortaleceu como se imaginou a princípio, mas identificou-se uma tendência de estagnação e retrocesso no processo de democratização dos países recém saídos de regimes autoritários ditatoriais, caso de estados da Ásia central, Oriente Médio, Bálcãs e numa parte expressiva da Europa Oriental. Esta crise profunda e geral dos sistemas democráticos seria mais simples se se restringisse apenas ao caso das “ democracias emergentes ”, mas também nas democracias “ maduras ” cresce a cada dia a certeza de que esta crise está em curso, pessoas como Jean-Marie Guéhenno e Cristopher Lash, sustentam a tese de que a era global das redes transnacionais transformou a nação e a política em formas anacrônicas de sociabilidade e solidariedade, destruindo as bases sociais e culturais em que se sustentaram as democracias liberais.
A razão da aparente insolvência dos Estados democráticos não parece estar somente no desaparecimento de um pólo oposto ao sistema de economia de mercado protagonizado pelas democracias capitalistas. A globalização financeira em curso no mundo, também mostra-se como uma causadora da dificuldade de consolidação democrática, de governabilidade e legitimidade dentro das nações que se alinharam com a cartilha do Consenso de Washington, que consiste basicamente no pagamento da dívida externa, equilíbrio das contas públicas, estabilidade monetária e privatizações.
“No caso dos ‘ países em desenvolvimento ’e em particular no caso dos que adotaram (como na América Latina) a estratégia liberal preconizada pelo Consenso de Washington só lhes vai restando a postura passiva de manutenção cada vez mais difícil de equilíbrios macroeconômicos capazes de seduzir os investidores internacionais (...) um ambiente onde sejam reduzidas ao mínimo as incertezas e a possibilidade de mudança nas regras e instituições econômicas”[2].
Acaba se estabelecendo desta forma um predomínio socialmente real da economia de mercado sobre o pólo estatal-político. As nações se vêem diante de um dilema : fomentar o sistema de mercado ou restringi-lo? O Estado desta forma entra em contradição consigo mesmo, na medida em que os seus ordenamentos, por um lado, não tem outra finalidade senão fomentar o sistema de mercado da produção de mercadorias no seu território e mantê-lo em funcionamento. Por outro lado, o Estado precisa “retirar” o dinheiro necessário para o financiamento precisamente dessas atividades do processo do mercado, restringindo, assim, a economia de mercado e agindo, por conseguinte, contra sua própria finalidade, precisamente para cumpri-la.[3] Sabemos que o Estado não é autônomo diante do mercado bem como a política não é autônoma em relação à economia, mas priorizar a área financeira em detrimento dos demais setores, principalmente os sociais e de infra-estrutura, tem levado ao crescimento do desemprego e do número de excluídos, bem como ao agravamento da má distribuição de renda, ratificando o que Marx antevia quando dizia que a burguesia produz, acima de tudo, a sua própria cova[4]. Sobre isso, Fiori ainda afirma:
“Os estados tornam-se endividados e prisioneiros dos ‘equilíbrios macroeconômicos’ perdem também a capacidade de financiar as demais políticas setoriais e em particular, as políticas de natureza social, num momento em que seu crescimento econômico é reduzido e já não assegura a expansão do emprego, o que só agrava a herança de enorme desigualdade social em países como o Brasil”[5]
Este quadro não é exclusividade do Brasil, ele se generaliza ao redor da América Latina. A busca da estabilidade econômica que possa ser atraente para investidores, enfrenta em muitos casos um problema de credibilidade relacionado ao que as agências de consultoria internacionais classificam de “risco país ”, que pode ser maior ou menor segundo uma avaliação neoliberal da conjuntura do Estado. Os países se tornam reféns dos efeitos colaterais das políticas econômicas que são, de certa forma, coagidos a empregar. A falta de competitividade, a grave ausência de investimentos, polarização social, crise de legitimidade, promoção da apatia cidadã, esvaziamento das militâncias partidárias, substituição dos partidos políticos pela mídia e um crescente esvaziamento das instituições representativas[6], são alguns dos aspectos negativos desta política ditada pela economia de mercado.
Isto se reflete em economias como a do Brasil, porque as reformas neoliberais prescindiram de uma verdadeira “reforma política”, ou melhor: as reformas econômicas tiveram como pré-condição o arranjo autoritário da “distribuição de poderes” e ausência de responsabilidade dos governantes. Daí que sua implementação não combinou com as exigências de ampliação da cidadania e controle social sobre o Estado, suas burocracias e seus aparelhos de poder[7]. [1] KURZ, Robert., “A Falta de Autonomia do Estado e os limites da Política: quatro teses sobre a crise da regulação política”, IN: KURZ, R., Os últimos combates, ed. Vozes, RJ, 1997, pg. 91 – 115. [2] FIORI, J. L., “Globalização e Democracia”, IN: FIORI, J. L., Os moedeiros Falsos, ed. Vozes, RJ, 1977, pg.222-223. [3] KURZ, Robert, op. cit., pg. 103-104. [4] MARX, Karl, “Burgueses e Proletários”, IN: MARX, Karl, O Manifesto Comunista, ed. Paz e Terra, SP, 2002, pg. 28. [5] FIORI, J.L., op. cit., pg. 223. [6] FIORI, J.L., op. cit., pg. 226-227. [7] CODATO, A. N., “ O Brasil em perspectiva: a questão democrática no governo FHC ”, pg. 06.

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