Pesquise no Blog

Resenha: "Um Inimigo do Povo" de Henrik Ibsen.

O drama transcorre em uma pequena cidade do litoral meridional da Noruega, o personagem central é o Dr. Thomas Stockmann. A princípio o imaginamos como um pacato médico do interior, mas já nas primeiras páginas constata-se que ele é um indivíduo ativo, resoluto e participante das questões mais importantes de sua sociedade. Isto decorre em parte de seu ofício, mas também por ser ele um funcionário público e o irmão do prefeito.
Apesar de possuir uma condição social estável, ele não estava tranqüilo, já há algum tempo, tinha constatado que os banhistas e turistas que freqüentavam a estação balneária da cidade estavam contraindo com freqüência tifo e febres gástricas. Suspeitou de que a água estava contaminada, pelos curtumes que ficavam rio adentro. Para não causar alarde, ele recolhe em segredo amostras da água e envia para uma universidade para que sejam feitas análises. Quando o resultado chega suas dúvidas se dissipam, estava comprovado que a água estava contaminada com detritos de animais decompostos. A questão passa a ser então, como iria proceder de posse dessa informação tão relevante.
Ele decide publicar um artigo denunciando a situação, a publicação seria através do jornal “A Voz do Povo” de propriedade de um amigo, o Sr. Hovstad. Esta decisão trazia junto de si inúmeras implicações. Primeiro ele estaria se indispondo com seu irmão, o Prefeito, porque tal notícia o prejudicaria politicamente, tendo em vista que o balneário era administrado pela prefeitura. Ele também enfrentaria a oposição dos donos de curtume, dentre os quais estava seu sogro, Morten Kill, além é claro, de todos aqueles que de alguma forma fizeram algum investimento na Estação Balneária, e que teriam seus negócios prejudicados. Mas Dr. Stockmann prefere enfrentar todos estes interesses particulares, a permitir que as pessoas em geral continuassem sendo expostas a esta contaminação.
Para isso ele contava com o apoio inflamado do Sr. Hovstad, e também de Billing (subeditor do jornal) e de Aslaksen (impressor do jornal e presidente da associação dos pequenos proprietários). Estes, quando ficaram sabendo da contaminação das águas, prontamente ofereceram apoio ao Dr. Stockmann, e garantiram que também a maioria da população o apoiaria na campanha para reverter este problema. O doutor estava decidido a enfrentar as autoridades e os demais detentores do poder local, para defender os interesses que ele considerava ser da maioria das pessoas, atitude que o entusiasmava. Contudo, as coisas não acontecem da forma como ele previa.
Quando a publicação da denúncia do Dr. Stockmann no jornal “A Voz do Povo” era iminente, o prefeito em uma visita à redação do jornal toma conhecimento do artigo escrito por seu irmão. Ele fica consternado e procura dissuadir Hovstad de que a publicação da denúncia não seria benéfica para o jornal. O prefeito alega que tal informação se veiculada, traria inúmeros prejuízos financeiros para a comunidade, os turistas se afastariam da Estação Balneária, os investidores, principalmente os menores, perderiam todo o seu dinheiro aplicado, e por fim, os assinantes do jornal o boicotariam, a partir do momento que identificassem o jornal como o veículo de tamanho prejuízo.
Diante destas alegações, Hovstad desiste de publicar o artigo do Dr. Stockmann. O impressor Aslaksen que também presenciava as ponderações do prefeito segue o mesmo caminho, principalmente quando é informado que os pequenos proprietários perderiam muito com o embargo à Estação Balneária, e por fim Billing também volta atrás. Nenhum deles estava disposto a ir contra a ordem estabelecida, principalmente quando se deram conta de que seriam prejudicados de alguma forma. O bem comum neste caso, passa a ser secundário diante dos prejuízos particulares que cada um sofreria.
Dr. Stockmann quando fica sabendo da mudança de posição de seus antigos defensores, decide levar adiante suas denúncias, contando basicamente com o apoio de sua mulher e filhos. Por manter-se irredutível no compromisso de levar a público o que havia descoberto, ele é demitido do posto de médico da Estação Balneária e desvinculado do serviço público, ou seja, acaba perdendo toda a sua fonte de renda. Ele procura um lugar para que seja realizada uma audiência pública, onde exporia a gravidade da contaminação das águas e assim buscaria o apoio da população. Porém, Dr. Stockmann não consegue nenhum espaço público para realizar sua audiência, pois  seu irmão publica um artigo em “A Voz do Povo”, fazendo menção ao problema da contaminação do rio, sem evidentemente expor os resultados das análises obtidas pelo doutor; e se referindo ainda, a eventuais obras e aos custos que elas teriam para as contas do município, já influenciando assim, a opinião dos cidadãos.
Depois de muito procurar um lugar para a audiência, um amigo, Sr. Hoster, cede sua casa para que seja feita a reunião. No dia em que ela ocorre, comparecem várias pessoas, cidadãos comuns, pequenos proprietários, e todos aqueles que de alguma forma teriam interesse sobre a questão. Esta era a ultima chance do doutor reverter a situação, mas o que era para ser uma audiência em que ele procuraria expor sua denúncia, se transforma em um debate. O que não poderia ser pior para ele, pois, por mais que estivesse defendendo uma verdade que traria benefícos para a comunidade, ele estava sozinho diante de vários opositores, e fazer a opinião da população virar a seu favor, não seria tarefa fácil.
Na medida em que o assunto vai sendo discutido, Dr. Stockmann vai ficando mais acuado e também mais nervoso. O apoio das pessoas ali presentes se torna praticamente inviável, quando o prefeito alega que, para que a prefeitura faça as obras necessárias para sanar o problema da contaminação das águas, a Estação Balneária ficaria paralisada por pelo menos dois anos, e que não tendo recursos para as obras, haveria um aumento de impostos para financiar as reformas. Diante da evidência de que não conseguiria o apoio dos cidadãos para sua empreitada, Dr. Stockmann passa do nervosismo para a calma, e muda de estratégia. Ao invés de insistir na questão das águas, ele passa a atacar a idéia de que a maioria seria detentora da verdade, sendo que agora, ele se considerava o único defensor da verdade.
No decorrer de sua argumentação, ele critica indiretamente os presentes, mas estes percebem a conotação de suas palavras e passam a vaiá-lo. Quando insiste em levar a público sua denúncia, mesmo diante da posição contrária de praticamente todos os presentes, e tendo que para isso seja necessário procurar jornais de outras localidades, as pessoas se revoltam contra ele e passam a chamá-lo de “inimigo do povo” e “traidor da pátria”, daí em diante a seção é tumultuada e termina com a cassação do direto de palavra do Dr. Stockmann.
As conseqüências de sua iniciativa, são duras para ele e sua família. Na mesma noite da audiência, sua casa tem as janelas apedrejadas, sendo ainda despejado dela, tendo em vista o temor do proprietário de eventuais represálias. Sua filha é demitida do cargo de professora pública, eles enfrentam dificuldades até mesmo para comprar alimento e seus filhos são expostos a provocações e atritos na escola. Eles então conseguem abrigo na casa daquele que parece ser o único a auxiliá-los, Sr. Hoster.
Mas inclusive ele sofrera sanção por ter cedido sua casa para a audiência chamada pelo doutor, tendo sido demitido do posto de comandante de embarcações, pelo proprietário destas e que também era acionista da Estação Balneária. Apesar de todas as pressões e da possibilidade de mudar-se, Stockmann decide permanecer no município. Convicto de que fizera a coisa certa, estava com a consciência tranqüila, e mesmo com as dificuldades, poderia continuar a viver na sua terra natal.

Apesar de se tratar de uma ficção, esta peça teatral demonstra as dificuldades que podem ser enfrentadas quando se almeja o bem comum. Mas uma questão se impõe, quem detém o monopólio dos interesses da coletividade? Um setor organizado da sociedade, os governantes, a grande massa da população, um indivíduo isolado? Nenhum destes podem ser considerados defensores exclusivos do interesse geral, porque este se refere a toda sociedade, e todos os seus integrantes detém em maior ou menor grau, direito de influir no processo decisório.
Teoricamente, aquele ou aqueles que defendessem uma verdade incontestável, como era o caso do Dr. Stockmann sobre a contaminação das águas, haveria de contar com o apoio da maioria. Mas, como Ibsen demonstra, e como é possível constatar ao longo da história, nem sempre a verdade e o bem geral triunfam diante de interesses particulares. Isto se deve em grande parte à dinâmica da opinião pública, que por sua heterogeneidade não possui muitas convicções pré-estabelecidas, sendo passível de manipulação por aqueles que possuem instrumentos para isso. É o que ocorre nessa obra de Ibsen, os líderes do poder público, da imprensa e das associações, por mais que representassem parcelas importantes da população, se preocuparam mais com as perdas econômicas e políticas ocasionadas pela notícia da contaminação, do que com os reflexos prejudiciais que ela traria às pessoas em geral.
E para garantir o apoio da maioria dos cidadãos, utilizaram-se de suas posições e dos recursos que detinham de forma vil, procuraram esconder a verdade tirando o foco da questão das águas e denegrindo a conduta do Dr. Stockmann, ludibriando a sociedade. Também chantagearam e adotaram represálias contra o doutor e quem quer que lhe prestasse apoio, visando desarticular qualquer forma de oposição a seus interesses. Este tipo de conduta é exatamente o contrário daquilo que se espera de pessoas que ocupam cargos público, que precisam buscar respostas eficientes às demandas da sociedade, e também da mídia, da qual se espera que  um retrato transparante da realidade e o zelo para que a verdade e o bem comum prevaleçam.
A população também possui responsabilidade diante de tais circunstâncias, pois é como um dever de todos, auxiliar na fiscalização das questões públicas, todavia o individualismo muitas vezes suprime esta visão de conjunto nas pessoas, tornando a gestão dos recursos e do aparato público, objeto da competência de poucos indivíduos, o que contribui em muito para que estes façam do Estado uma fonte de benefício próprio. Outra questão em evidência na obra de Ibsen é a postura que se deve ter diante de um processo democrático. Pode-se verificar que Dr. Stockmann não consegue atingir seu objetivo porque encontrou uma forte oposição. Mas sua atitude teria influído sobre o desenrolar dos fatos? Certamente que sim.
O autor em diversos momentos descreve seu comportamento, e o retrato que temos do doutor é o de uma pessoa inquieta, sempre andando de um lado para o outro, esfregando as mãos, de temperamento forte e imprevisível, que em várias ocasiões exaltava-se, seja para a alegria como para a ira. Desde o início ele já estava preparado para defender sua posição, tanto que já tinha elaborado um artigo denunciando a contaminação, mesmo sem ter a certeza de que ela realmente ocorrera. Quando ficou comprovado que o rio estava contaminado, ele optou primeiramente pela denúncia, e sustentou esta posição, mesmo quando seus aliados de primeira hora o abandonaram, insistiu por esse e caminho acabou isolado, prejudicado e sem conseguir reverter a situação.
Creio que o autor procura evidenciar assim, que é preferível o debate, o diálogo, uma saída negociada, a optar pela polarização das opiniões, pela defesa radical de algum ideal, mesmo que este se baseie na verdade científica. Ou seja, o processo decisório democrático é indeterminado, não se baseia somente no que pode ser considerado uma verdade irrefutável, se assenta também, e com mais freqüência, na imprevisibilidade das opiniões pessoais e dos fatos cotidianos. Neste sentido, pode-se concluir que as questões democráticas, além de priorizarem a vontade da maioria e se basear na verdade dos fatos, requerem também uma grande medida de bom senso e temperança, em particular naquelas questões em que a complexidade política, valorativa ou socioeconômica são maiores.

Henrik Johan Ibsen (1828 – 1906), dramaturgo norueguês e um dos principais expoentes do teatro realista moderno.

Bibliografia 
IBSEN, Henrik, Um Inimigo do Povo. L&PM, Porto Alegre, 2003.

9 comentários:

Marcus Berg disse...

Obrigado!
=)

Anônimo disse...

ÓTIMA RESENHA!

Anônimo disse...

Ótima referência para os tempos de Lava Jato!

Unknown disse...

Muito boa a referência... Grata!

Unknown disse...

Adorei... Grata!

Unknown disse...

Muito bom!

Unknown disse...

Muito bom!

Unknown disse...

Muito boa essa resenha! Me ajudou muito na compreensão do enredo da peça!
Obrigado!

Anônimo disse...

Não acho que a democracia vive da forma expressada, a verdade deve se sobrepor.